terça-feira, março 06, 2007

Não me ler



Não escrevo para me ler.
Temo que as palavras me escapem por entre os dedos
Feito areia fina do deserto
Que fujam a sete pés ou afluam à superfície;
Que se esgueirem por entre as brechas da minha memória
E desatentas resolvam chamar-me à atenção
Me digam as verdades escondidas que quero calar
Me ralhem e me desnudem e possam dizer-me o que não quero escutar
Por isso, e nestas fases, tranco-as a sete chaves
E alimento-as a pão e água para que definhem nas minhas masmorras profundas e escuras.
Quero-as fracas, quebradiças e resignadas à sua sorte.
Encarceradas e prisioneiras
Condenadas à morte
Para que não se amotinem nos assaltos das minhas entranhas
Nem que desfaçam as minhas amarras que tanto trabalho me deram a compor
E onde me contenho a custo e esforço.
A ferro e fogo, a sangue e lágrimas
Não escrevo para me ler.
Calo-me às letras: evito as profundas frases
Nas quais tendo a estender-me e a perder-me
Contorno as palavras, escrevo, dito e faço tudo ao contrário
Do que habitualmente me revejo
E faço de conta que não estou em casa.
Enxoto adjectivos, sujeitos e complementos,
Como pedintes que espreitam à socapa pelo óculo da porta.
Desactivei-me temporariamente.
Deletei-me por fim
E fiz um restart
Receio que as palavras, matreiras, rafeiras
Me fintem, me levem ao engano, ao absurdo
Ou pior ainda, me encantem feito sereias,
Estendendo-me na mão conchas, flores e colares
Oferecendo-me a bandeira branca da paz
Ou que me deiem a sua outra face.
Não suportaria!
Não quero que se insinuem,
Nem que se dispam e rodopiem no varão da minha imaginação doente.
Feito stripers sensuais que seduzem, aquecem e depois desaparecem
Tenho medo do que possa encontrar de mim, nelas.
Tenho medo de te procurar em ti, nelas.
Tenho medo de me encontrar a mim, nelas
Não escrevo para me ler...
Escrevo para não me ler

Um comentário:

Anônimo disse...

Eu gosto de te LER :-)
Beijo doce